Quantos negros comandam o futebol brasileiro?
Marcelo Carvalho, fundador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol
“Existe uma construção que foi feita para dar satisfação para sociedade do porque escravizaram os negros. Você precisava de uma base jurídica, científica e social para escravizá-los e foi toda uma construção provando que os negros eram pessoas inferiores. E você precisava do judiciário para não penalizar quem estivesse escravizando ou para não penalizar, até hoje, quem comete racismo. 99% dos casos acabam indo para injúria racial e não sendo penalizados. Se a lei é a mesma para os casos de homofobia, esses também não serão penalizados. Ao mesmo tempo você diz que a lei do racismo é boa, mas não é. Ninguém no Brasil é preso por 'racismo'.
A lei diz que racismo é impedir uma pessoa negra de entrar em determinado espaço. Racismo é ofender a uma coletividade. Injúria racial é ofender uma pessoa. Dificilmente alguém é preso por isso no Brasil, porque a pena é inferior a 3 anos. Em quase todos os casos você consegue um acordo e paga cestas básicas, presta serviços e isso faz com que as pessoas perpetuem o racismo.
A reprodução desse sistema vêm da escravidão até os dias de hoje nos quadros de poder na sociedade, onde negros não têm espaço. Não é que não temos pessoas negras em determinados lugares, mas são exceções à regra. Você não consegue me apontar mais de um ou dois casos.
Libertar os negros de um dia para o outro mas não dar suporte para que eles vivam após a escravidão trouxe reflexos até os dias de hoje. Proibiram negros de frequentar escolas, de serem donos de terra. Além de eu não dar uma condição de igualdade, eu ainda proíbo, quer dizer: eu quero perpetuar aquela condição de inferior.
Irlan Simões, jornalista e podcaster do “Na Bancada”
“O Brasil é um país extremamente racista. Tem um legado da escravidão que durou mais de 300 anos e sempre relegou sua população negra um papel secundário, submisso e mesmo depois do período da escravidão, promoveu um embranquecimento de sua população.
Boa parte dos treinadores hoje, foram jogadores não renomados de sua época, que não atingiram o estrelato [Felipão, Tite]. Brancos ou não, treinadores surgem do sudeste e do sul em clubes pequenos, da série B, e com boas campanhas vão decolando na carreira. Mas processo de alçar esse treinador a um patamar mais alto está relacionado diretamente a uma estrutura clássica no futebol brasileiro, enraizada há pelo menos vinte anos: você sai de um clube e leva dez, onze jogadores por conta do empresário, que muitas vezes é o mesmo do treinador. Isso forma um ciclo vicioso que talvez explique essa questão.
Vejo treinadores que não são brilhantes mas que sempre conseguiram manter essa estrutura e se beneficiar disso, como é o caso do Vagner Mancini, Mano Menezes [em 2019 trocou Cruzeiro na zona de rebaixamento por Palmeiras na vice-liderança], que são brancos.”
A reportagem destaca que outros casos como Jayme de Almeida, Andrade e Cristóvão Borges, não tiveram o mesmo sucesso e nem ganharam tantas oportunidades em clubes diferentes como os brancos normalmente têm.
Durante a exibição do programa Bate-Bola, da ESPN, em 2014, o jornalista Paulo Vinicius Coelho explicou uma contratação extremamente contestada pela torcida, que reforça essa estrutura de agentes e treinadores citada pelo Irlan:
"Por que o Felipe Menezes está no Palmeiras? Porque quando contratou o Alan Kardec, o empresário disse: só vai se acertar com o Felipe Menezes.”
O futebol, depois dos anos 80, virou uma grande indústria com proporções um tanto distintas do começo. Por mais que os clubes não digam, são hoje pensados, geridos e concebidos como empresa, na perspectiva da rentabilidade financeira da atividade.
A torcida do Bahia participa dentro do clube e força os dirigentes a se dobrarem a essa perspectiva social.
José Paulo Florenzano, Professor Dr. de antropologia da PUC-SP e pesquisador na área esportiva
O futebol permite abordar os múltiplos aspectos da vida social, no caso, o que nos interessa aqui, o racismo. O racismo estrutural é o mecanismo através do qual as instituições reproduzem as posições que os grupos ocupam dentro da sociedade. Então, eu entendo o racismo estrutural como esse mecanismo que naturaliza o lugar, o valor, a posição dos grupos dentro da sociedade. E isso se dá, sobretudo, através da instituição chave, que no caso do racismo é a educação. Então, quando você pensa em racismo estrutural, o elemento chave dessa estrutura que faz com que ela se reproduza é a educação. Não é por acaso que a educação no Brasil é um capital acessível às classes privilegiadas. O sucateamento da educação no Brasil para as classes populares, a escola pública no ensino fundamental e médio, não é o fracasso da educação no Brasil, é o sucesso da educação no Brasil. Porque ela é pensada para educar para inferioridade desses grupos sociais. Eles são educados para, no mercado de trabalho, exercerem o papel semiqualificado, não qualificado, as posições subalternas dentro da estrutura hierárquica no mercado de trabalho. Então, olhando por esse prisma do racismo estrutural, a escola pública é um sucesso, porque ela educa para inferioridade.
É a lógica pela qual o racismo se reproduz no Brasil. Então não é a mesma da África do Sul, onde o racismo foi legalizado, o apartheid foi instituído e você tem toda uma ideologia que justifica o desenvolvimento separado. Não é como funcionava o Jim Crow nos EUA, nós esquecemos, mas os EUA tiveram um racismo legalizado no sul do país até o movimento pelos direitos civis nos anos 50. No Brasil você nunca teve na legislação o racismo, pelo menos no período republicano você nunca teve isso, o racismo legal. E o Brasil então projetou uma imagem para o mundo de que aqui haveria uma democracia racial. Que também se expressaria na ausência de conflitos abertos entre negros e brancos. Mas o conflito existe, entre negros e brancos, e ele se expressa no caso brasileiro através da ação do aparato repressivo que recai ao arrepio da lei sobre pretos e pobres no Brasil. Então assim, é o mecanismo pelo qual o racismo opera no brasil. Ele é sutil, ele não se explicita, pelo contrário, quando nós nos deparamos com um caso flagrante de racismo, parece que é uma comoção. Porque justamente você não pode revelar o racismo. Esse é o jogo errado, você revelar explicitamente que se trata de racismo.
Breiller Pires, jornalista da ESPN Brasil e do El País
“O futebol desconstrói duas coisas do racismo: de que o racismo é algo velado e de que é fruto de uma consequência social. Se pegarmos jogadores de futebol brasileiros, a maioria vem de origem pobre, de famílias desestruturadas e com grande quantidade de negros. Mas quando vemos técnicos de futebol, não temos a mesma quantidade, mesmo que a maioria dos técnicos tenham sido atletas no passado.
Quando o time está em ótima fase, o discurso do jogador branco é supervalorizado, muito mais que o jogador negro. Ele tem uma aparência legal e engana suas atitudes por um tempo, é o padrão implementado pela sociedade. No entanto, na hora de avaliar a figura de um ídolo, o negro é mais criticado, e muito com insultos racistas.
Um exemplo disso é o meia do Atlético-MG, Cazares, que foi duramente criticado como o cachaceiro, baladeiro do time, sendo que existem diversos jogadores brancos nesse padrão e não é passado da mesma forma [por exemplo o meia Douglas, ex-Grêmio e Corinthians].O negro precisa se provar todos os dias, sendo no futebol ou não.
A reportagem também destaca uma frase do meia Diego, então atleta do Santos, para a Revista Trip tpm, edição de outubro de 2003:
“Não precisa ser feio nem pobre para jogar bola bem”.
A frase de um dos jogadores de mais relevância à época, escancara como o preconceito estava enraizado na sociedade e se reflete até os dias de hoje.
“Faltam posições de mais rigidez de clubes e federações. É preciso um projeto de cotas nos clubes e nas federações, para que ao menos se entreviste o negro e sejam cogitados. A nossa seleção reflete muito isso, por não ter nenhum técnico negro no comando. Quando um negro falha, ele não só carrega para si mesmo, como espalhará para outros que estão no mesmo caminho. Não podemos encarar o futebol como um mero negócio, e sim como parte de uma cultura popular que aos poucos está sendo eliminada e transformando em empresas que visam o lucro.
Um negro entra no futebol por interesse dos brancos, em um momento em que clubes enxergavam uma massa de dinheiro que poderia ser gerada a partir da periferia onde o negro é inserido, com uma visão lucrativa ao clube nas disputas de ligas. O Vasco foi pioneiro nisso, abriu mão de liberar os seus jogadores para a disputa do Campeonato no Rio de Janeiro, mas hoje em dia, já não se faz mais isso. Alimentam uma omissão da história na sociedade com o racismo. Pessoas ainda sofrem de trabalho escravo e negros ainda não estão em posições favorecidas na sociedade.”
“O Pelé era uma bandeira para a manifestação dos negros, tanto pelos gols pelo Santos, a atuação magistral na Copa do Mundo, sem mesmo saber dessa importância. Seria legal ele se manifestar diante do racismo, mas ele prefere não se envolver para não causar um entrave com sua figura. Por que os jogadores de ambas equipes não se retiram do jogo em casos de racismo, para que o negro na se sinta sozinho nessa luta? Acabam criminalizando a vítima por se pronunciar diante disso. É preciso o envolvimento de clubes, federações e também dos jogadores dos clubes. É muito covarde depositar nas costas de jogadores negros toda essa carga de luta contra o racismo”, afirma Breiller Pires.